Do cheiro da tinta e do papel
Diário de Notícias | 20.07.2017
Lembro-me de ser miúda e, naquelas alturas de receber presentes, repetir, Natal após Natal, anos atrás de anos, sempre o mesmo pedido a pais, avós e tios. Recordo-me de apontar nas livrarias, de assinalar com uma cruz pequenina cada capa desejada a brilhar nas páginas do catálogo do Círculo de Leitores, de ler e reler as cinco linhas em que se resumia o enredo das novas aventuras que havia de conhecer – entre a avidez dos primeiros dois terços do livro e o controlo a que me obrigava quando me aproximava do fim, por pena de ver a história acabar. Ainda hoje leio a esses dois ritmos. E se antes tinha alguma vergonha de não chegar à última página com o livro imaculado, agora até acho graça às cicatrizes deixadas nas páginas, na capa e na lombada – as dobrinhas nos cantos a marcar o lugar onde me interrompi, uma frase destacada, o borrão de uma pinga de café seca, um recibo de qualquer coisa ali esquecido -, que me fazem viajar no tempo quando volto a cruzar-me com aquelas histórias. Chamem-me antiga, mas acho que nunca me habituarei a ter prazer na leitura sem aquele peso certo nas mãos, o cheiro da tinta e do papel a acompanhar a viagem em que embarco sempre que entro numa nova escrita. E aparentemente não estou sozinha.
Enquanto as vendas de livros físicos começam a retomar a tendência de crescimento na Europa, os kindles e primos, depois de um lançamento prometedor e de uma década a subir, estagnaram, representando há três anos menos de um quarto do mercado livreiro global, e até sofrendo quedas em países com hábitos de leitura muito mais desenvolvidos e com maior aptidão para o digital, como o Reino Unido, a Alemanha ou até os Estados Unidos.
Não posso, por isso, deixar de me surpreender quando assisto a certos passos dados por quem mais devia estar a investir na criação de laços entre as crianças e os livros. Como a proposta d’Os Verdes, feita lei na semana passada com abstenção do CDS e aprovação de todos os outros partidos, para fomentar a desmaterialização dos manuais escolares. Há argumentos na devastação da floresta, mas num momento em que tanto se fala de economia circular (reutilizar ao máximo os recursos, reduzir o desperdício ao mínimo), o papel é uma das indústrias onde a reciclagem está mais avançada – nos jornais e nos livros, chega a 80% a utilização de fibras recuperadas em novas publicações. Podemos discutir o peso das mochilas que os miúdos levam para a escola, mas isso resolve-se com cacifos e boa coordenação entre os professores das diferentes disciplinas. Há vantagem na integração com outros conteúdos e na criação de uma escola aberta (na era digital, os alunos podem explorar, procurar respostas e encontrar áreas de interesse sem limites), mas isso deve funcionar como complemento. Não é comparável às vantagens que resultam de dar um livro a uma criança pequena e deixá-la aprender, comunicar e interagir com ele.
Num país como Portugal, onde as vendas caíram brutalmente nos últimos cinco anos – só agora começa a haver uma tímida recuperação no mercado livreiro – e no qual ler acima da média se traduz em despachar cerca de um livro por mês (em França, por exemplo, esse valor é superior a um por semana), a ideia de o Estado chamar a si a função de garantir manuais escolares a todos os alunos, não oferecendo-os às famílias, como fazem algumas autarquias, mas antes emprestando-os e exigindo a devolução em condições de serem reutilizados é um desincentivo adicional.
Como é que se incute num miúdo de 7 ou 8 anos o gosto pela leitura, quando a sua casa chegam poucos mais livros do que os manuais escolares – e esses têm de ser tratados com todo o cuidado, sob pena de os pais não receberem os do ano seguinte? Que tipo de relação criarão essas crianças com os livros? Como poderão olhar para a montra (física ou digital) de uma livraria e não sentir alguma aversão?
Apresento, naturalmente, uma visão simplificada de um tema que é complexo, mas a base está lá. Sem que se alimente desde cedo certos hábitos, sem que se contribua e incentive a construção de uma relação afetiva com os livros – sobretudo entre os que têm menos acesso a eles -, será muito difícil descolar Portugal do fundo da tabela dos que mais leem.
A estatística mais recente do Eurostat revela que apenas 41% dos portugueses leram um livro nos últimos 12 meses – pior, só na Roménia e na Turquia. Para produzir uma mudança no comportamento, há que reconhecer o papel fundamental que têm nisto os manuais escolares.
Os manuais escolares e o desapreço pelo livro
Diário de Notícias | 27.08.2017
A dívida que temos para com o livro impresso é inestimável seja qual for o ângulo pelo qual queiramos avaliá-la: intelectual, emocional ou moral. Não deveríamos esquecer essa dívida. Até porque, embora sendo muito antiga, ela não só não prescreveu como continua a aumentar.
Neste caso como noutros, porém, a comodidade é mais forte do que a sensatez. Assim se compreende, desde logo, a tendência para pensar que, com a expansão da tecnologia digital, a página de papel se encontra hoje completa e irreversivelmente superada.
A própria ideia de novidade induz um efeito poderoso de facilitação e deslumbramento. Um livro de duas centenas de páginas (ensaio, manual ou romance) requer perseverança, precedida de curiosidade e acompanhada de silêncio. Já a apropriação do arquivo digital leva a pensar que esse contacto lento e contínuo, que tanto contraria os nossos ritmos, pode sempre ser adiado.
A desvalorização do livro impresso que, de forma direta ou indireta, encontramos instalada na esfera pública chegou à escola. Era inevitável que assim tivesse acontecido.
Lutando, ela própria, contra dificuldades tão sérias como a crescente heterogeneidade social e cultural dos alunos que acolhe ou o desgaste dos professores, tão continuadamente abandonados à sua “sorte” pelo poder político e pela sociedade em geral, a escola necessita de formas de alívio, ainda que momentâneo. Neste contexto, não admira que o livro tenha começado a ser visto como raiz de alguns males ou simplesmente como dificuldade que pode evitar-se. Assim aconteceu primeiro com os livros grossos (por sinal, os que pesam mais na mochila) e difíceis, como são, em geral, os livros de filosofia ou de literatura, por exemplo.
Mas os sinais de desapreço não param de crescer. Basta pensarmos no que está a suceder com o processo do empréstimo dos manuais escolares. A intenção do governo de facultar gratuitamente esses livros aos alunos é boa, como são boas todas as medidas que se destinem a aliviar o orçamento das famílias. Tratando-se de educação, porém, é necessário lembrar que o dever de investimento deve sempre sobrepor-se à pequena satisfação da poupança.
Ora, a obrigatoriedade de devolver o livro no final do ano letivo pode estar do lado da poupança mas não está seguramente do lado do investimento cívico.
Não parece educativo que o manual possa ser visto como objeto de posse transitória. Enquanto elemento decisivo de aprendizagem, o livro deve ser entregue ao aluno acompanhado de um estímulo direto: o de que o aluno se aproprie dele o mais possível, lendo-o, consultando-o, escrevendo nas margens dos textos, sem nenhum tipo de condicionamento. Nessa medida, a posse plena de um livro deve significar para a criança ou o adolescente o início de uma relação também emocional, que se deseja viva, duradoura e frutuosa.
Pode dizer-se que este ideal é utópico. Pode inclusivamente lembrar-se que, na maioria dos casos, os alunos deixam de se interessar pelos manuais escolares depois de eles lhe terem servido (pouco ou muito) ao longo do ano. Não há nenhuma dúvida quanto a esse facto.
Mas é a esse nível que a escola tem obrigação de se assumir como instância de resistência. Mesmo contando com o extraordinário progresso tecnológico ocorrido na última década (que tantas e tão importantes possibilidades abriu também no domínio educativo), está fora de dúvida que o livro impresso continua a desempenhar funções decisivas em ambiente escolar e fora dele. Cabe, por isso, ao ministério e aos professores emitir sinais no sentido de chamar a atenção para o valor dos manuais e também dos outros bons livros, que a escola dá a ler.
Para além de cautelosa, esta atitude de boa propaganda assinalaria um importante compromisso de equidade social. Uma coisa é contribuir o mais possível para o acesso universal e gratuito à escolaridade obrigatória. Outra coisa, bem diferente, é apresentar soluções arriscadas que podem agravar desigualdades.
Os jovens para quem esta medida foi pensada (os mais pobres) devem ficar libertos da obrigação de restituir os livros escolares que lhes são emprestados no início do ano. Em alguns casos, pode tratar-se dos primeiros livros que são confiados a uma criança. Também por isso eles devem ficar ao seu dispor, para que possa guardá-los e abri-los ao longo da vida.
José Augusto Cardoso Bernardes
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra
Aprender sem barreiras
A propósito do que vou lendo e ouvindo por aí sobre a importância de preservar os manuais escolares, vem-me à memória uma imagem que retive quando visitei o Museu Picasso, em Barcelona: os manuais escolares usados (e guardados) pelo pintor apresentam-se repletos de apontamentos e anotações manuscritas. É um exemplo paradigmático da importância do manual escolar para o percurso educativo dos alunos, para o desenvolvimento das aprendizagens e da própria criatividade, mas também do que deve ser entendido como uma correta utilização deste tipo de recurso didático-pedagógico.
JORNAL DE NOTÍCIAS | 20.09.2016
Personalizar o que é nosso é uma necessidade do ser humano. Os livros não são exceção. Sublinhar, anotar e numerar são algumas das muitas formas de personalizar um texto e de nos apropriarmos do seu sentido, tornando-o mais acessível e útil para os nossos projetos e atividades, sejam elas lúdicas ou instrumentais.
Nas nossas estantes, ao abrir um livro, literário ou escolar, muitos são os círculos, os sublinhados, os traços, os pequenos apontamentos, os significados de palavras desconhecidas, as perguntas suscitadas pela leitura e os desenhos ou esquemas que representam sensações, associações de ideias e até o que é explicado em contexto escolar. O uso dos livros sempre fez parte da nossa cultura, ao ponto de os materiais em formato virtual já disponibilizarem essas funções.
Infelizmente, cada vez mais jovens chegam ao Ensino Secundário e até à universidade sem o hábito e a destreza de anotar as suas leituras, de sublinhar os textos e de mobilizar todos os meios que lhes permitam apropriar-se dos materiais escritos com que lidam na escola e mais tarde, profissionalmente ou por simples lazer, fora dela.
Diversos estudos realizados em universidades americanas e europeias demonstram inúmeras vantagens na utilização dos livros escolares e na possibilidade de os usar como ferramenta de estudo e, naturalmente, tomar notas, sublinhar, numerar ou destacar graficamente. Estas técnicas ajudam a melhorar a compreensão de um texto devido ao esforço cognitivo e de atenção que implicam, ajudam a estruturar o pensamento, para além de poderem ser úteis para, no futuro, relembrar mais eficaz e rapidamente os assuntos abordados nas aulas.
A gratuitidade através do empréstimo e subsequente necessidade de devolver os manuais escolares como novos, não permitindo uma utilização plena dos seus recursos, levanta barreiras na aprendizagem e gera constrangimentos no estudo dos alunos. O livro escolar é o meio de aprendizagem por excelência, que permite a qualquer aluno uma abordagem coerente, flexível e eficaz aos programas educativos, que promove uma ligação forte e biunívoca com os professores.
Querer impedir que, durante o estudo, os alunos sublinhem ou tomem notas nos manuais é pedagogicamente contraproducente. Os conhecimentos disponibilizados pela psicologia, pelos inúmeros estudos multidisciplinares internacionais existentes sobre este assunto e todo o saber empírico acumulado por gerações de leitores não devem ser ignorados. A liberdade de escrever nos livros é essencial no processo de aprendizagem, independentemente do ano de escolaridade ou da disciplina em questão.
A reutilização é um propósito bem-intencionado que, no entanto, não deve sobrepor-se ao que é fundamental na Educação: o sucesso educativo e o desenvolvimento, cultural, pessoal e social dos nossos alunos. Querer limitar a utilização plena e livre das ferramentas de aprendizagem é pôr em causa esse desígnio.
Adalberto Dias de Carvalho | Professor do ensino superior
Tirando a casca ao discurso do Governo
Os normativos que regulam a carreira docente estão inertes em matéria de direitos.
PÚBLICO | 19.04.2017
(…)
3. O estudo da generalização do uso de manuais digitais foi aceite pelo Parlamento, após proposta do PEV. É preocupante a tendência para substituir livros por recursos digitais, sem estarem apuradas as consequências que daí podem advir para os alunos, em sede de desenvolvimento cognitivo. Com efeito, o avanço recente do conhecimento nesta área põe reservas fortíssimas à ideia segundo a qual é desejável a imersão total dos jovens na tecnologia digital. Outrossim, o que a psicologia cognitiva nos vai dizendo é que não chega fornecer ferramentas digitais para que o conhecimento se adquira, já que essa aquisição segue processos cerebrais que pouco distinguem o “nativo digital” do adolescente das cavernas.
Santana Castilho | Professor do ensino superior
Manuais Escolares: Sensacionalismo e Inconsequência
Há que ir além da arraia-miúda, ter coragem de elevar o olhar e apontar o dedo a quem tem mesmo grandes responsabilidades nisto tudo. E parar de acusar os professores.
PÚBLICO | 23.01.17
Alguns dias passados sobre os programas e debates da RTP3 e TVI sobre o processo de produção e comercialização dos manuais escolares, tendo pousado rapidamente a poeira levantada de forma muito agitada por aqueles dias, já é possível fazer um balanço do que (não) passou.
Comecemos pelo fim: a única consequência que se pode identificar daquilo tudo é que o Ministério da Educação (ME) vai encomendar um estudo para, em 2017, saber como é constituído o preço de um manual escolar. Sim, é verdade, com tanto grupo de trabalho e estrutura de missão ao longo das décadas, incluindo encomendas estranhas para sistematização de legislação já sistematizada por parte de alguém que também por ali passou, em Portugal, em 2017, aparentemente (sublinho o “aparentemente” por razões óbvias), o nosso ME não faz ideia da forma como se chega a um determinado preço de um artigo que ele impõe, em regra, como obrigatório para muito mais de um milhão de alunos (e esperemos por manuais para o pré-escolar, que deve ser o must da próxima temporada). Eu acho que o que se passa é outra coisa… o ME já sabe, sempre soube, mas precisava de um pretexto para anunciar o estudo que já deve estar mais do que alinhavado. Mas isso são os truques habituais para iludir a opinião pública.
Continuando. Comum a ambas as reportagens, embora com maior gravidade e ligeireza na da RTP, a imputação aos professores da responsabilidade por obrigarem os pais a comprar manuais, optando por aqueles em que os grandes grupos editoriais lhes dariam maiores ofertas, falando-se mesmo em viagens. Nada surgiu em qualquer das reportagens como prova documental da “denúncia”, muito pouco sobre o verdadeiro processo que determina o calendário e procedimento das adopções (responsabilidade do ME), nem grande coisa sobre tudo o que anda em volta dos materiais auxiliares que também são promovidos em catadupa em cada momento que um ministro ou secretário de Estado, pela sua cabeça ou como simples testa de ferro, decide alterar calendários e natureza de provas de avaliação externa ou inventa mesmo novas alterações às provas existentes ou aos programas das disciplinas, com destaque para o Português e a Matemática. Nada ainda sobre a implicação que a adopção do Acordo Ortográfico nas escolas de forma obrigatória teve em tudo isto.
O que apareceu de mais relevante: o enorme desperdício de manuais e outros materiais não adoptados ou não utilizados (reparem que não me pareceram manuais já usados a ser destruídos), algumas pessoas a fingirem que nada era com elas (o senhor da Autoridade da Concorrência, a ex-ministra que sacudiu para o secretário de Estado a responsabilidade por não ter conseguido um acordo com as editoras, o mesmo que não teve qualquer problema em não querer, sequer, um acordo com os professores sobre a sua carreira), outras com a pose de quem sabe dominar o “mercado”, um pseudo-arrependido a dizer banalidades sem concretização (o lamentável “promotor escolar”) e alguns professores a tentar descrever algumas perversões do sistema (o Luís Braga e o Carlos Grosso, por exemplo), mas parecendo ficar na mesa da edição o mais importante e decisivo em todo este processo e que é o nível da macro-decisão, aquela em que se decide o que muda, quando e que permitiu a existência de um processo de concentração e cartelização do mercado dos livros escolares.
O que passou ainda por aquelas reportagens foi uma enorme hipocrisia de algumas figuras que apareceram e o não cumprimento da promessa de denunciar certas cumplicidades institucionais e pessoais. Foi suave o tratamento dado a uma confederação parental demasiado prisioneira das suas parcerias, foi inexistente a relação estabelecida entre o secretário de Estado incapaz de negociar um acordo bom para o interesse público e o ex-secretário de Estado capaz de ir administrar um dos grupos empresariais do sector, bem como a investigação sobre a coincidência de preços entre manuais de grupos teoricamente concorrentes ficou pela mera enunciação do facto e apresentação de documentos de outros tempos. A verdade é que terão existido denúncias bem mais recentes para a Autoridade da Concorrência que ficaram por investigar, enquanto o seu dirigente máximo constata evidências e faz nada. O auto-branqueamento dos poucos políticos que apareceram já era esperado, estranhando eu mais que ninguém ligado aos pareceres do Conselho Nacional da Educação aparecesse a dar a cara pelo que escreveu, quando tão rápidos são a aparecer quando o assunto é outro. Tenho umas ideias sobre a razão, mas logo se verá qual o movimento editorial. O movimento editorial que também não foi investigado, fazendo uma verificação de nomes entre quem apoia a produção de legislação na esfera pública e quem publica na esfera privada a explicar aquilo que os normativos se esmeram por tornar opaco e carente de explicação anotada e comentada.
Entendamos uma coisa: eu acho que os nossos manuais estão ao nível do melhor que existe em qualquer parte do mundo e que as editoras têm todo o direito de explorar um mercado que o poder político lhes deixou nas mãos. Só que… então não deveríamos todos poupar e evitar os luxos? Não será possível produzir manuais escolares muito mais baratos sem uma redução catastrófica da “qualidade”, quando na escola existem recursos digitais para ir em busca dos materiais que teoricamente mais encarecem os manuais: as imagens e infografias? Não seria possível ao ME produzir (ou encomendar) manuais e materiais “marca branca” para concorrência verdadeira no mercado? Sem promiscuidade de autorias de metas e manuais, programas e livros de apoio?
A questão da reutilização, no meio disto tudo, é importante mas tem sido usada como pretexto para outro tipo de luta. A esse nível, defendo a liberdade de todos: do Estado para impor regras a quem usa materiais recebidos de borla e das famílias para optar por querer essa possibilidade ou optarem por comprar e guardar os seus livros. Afinal, um manual também é um livro e tem a mesma dignidade de outros que possamos ter nas nossas estantes. Terá mesmo, porventura, maior importância na nossa formação como leitores do que tantos outros.
O balanço final parece-me magro para tanto alarido. Afinal, repito o que disse no debate da RTP3: há que ir além da arraia-miúda, ter coragem de elevar o olhar e apontar o dedo a quem tem mesmo grandes responsabilidades nisto tudo. E parar de acusar os professores por todas as tropelias (há quem faça algumas, mas a esses apliquem o devido castigo, não metam lama na ventoinha), mesmo quando os apresentam como meros idiotas úteis, operacionais involuntários de grandes interesses. Tenham a coragem para ir mais além. Se (v)os deixarem.
Paulo Guinote | Professor do 2.º ciclo do Ensino Básico
Manuais escolares: factos vs. demagogia
O debate em torno do manual escolar tem de ser feito com seriedade e rigor, sem cedência a demagogias e populismos, e com espírito de compromisso.
PÚBLICO | 13.12.2016
Num tempo em que o populismo cresce, é bom sermos rigorosos para contrariar exercícios de manipulação da opinião pública.
Em artigo de 5 de dezembro, no PÚBLICO a ex-ministra Maria de Lurdes Rodrigues vem dar o seu contributo para alimentar as intenções estatizantes e centralizadoras que sustentam a política de intervenção na edição escolar. É um contributo coerente com o exercício do seu mandato enquanto ministra da Educação de 2005 a 2009, definido por analistas como obsessivamente centralizador e incapaz de respeitar os diferentes agentes, como foi evidente com o tratamento dado à classe docente.
Todavia, importa lembrar que Maria de Lurdes Rodrigues, enquanto ministra num governo de maioria absoluta, é responsável por uma Lei estruturante em relação aos manuais escolares (Lei N.º 47/2006), um decreto-lei regulamentar e inúmeras portarias e despachos, enfim, por toda uma produção regulamentar complexa e pormenorizada que se mantêm em vigor. Perante a contradição em que a ex-ministra se coloca, e que a descredibiliza, o que sobra é a tentação demagógica e populista de denegrir todo um setor, que é um dos principais impulsionadores da economia do conhecimento, com o objetivo primordial de o fragilizar e quase “nacionalizar”, como se o país ficasse mais rico com um setor do livro mais fraco.
O artigo da ex-ministra da Educação dá a oportunidade de partilhar com os leitores do PÚBLICO, com franqueza e transparência, alguns factos que vemos serem convenientemente ora esquecidos, ora manipulados em artigos de opinião ou mesmo em artigos jornalísticos.
Facto 1: o setor do manual escolar está regulado, arriscaria mesmo em afirmar que está regulado em excesso, especialmente desde o tempo da ex-ministra. Uma regulação da exclusiva responsabilidade do Ministério da Educação, estruturada sem ouvir os editores e sem uma avaliação séria, ponderada e rigorosa da realidade. Uma regulação que vai ao ponto de definir os preços máximos, as datas de produção, o peso limite, as características técnicas dos materiais usados, os critérios e os calendários de certificação e avaliação dos manuais e as regras de divulgação, que impõe mudanças nos conteúdos, como aconteceu com o Acordo Ortográfico e as Metas Curriculares.
Facto 2: Portugal tem dos sistemas mais centralistas a nível europeu. Há anos que os editores escolares chamam a atenção para as realidades de outros países (nos quais os manuais também são considerados indispensáveis), onde há uma visão estratégica clara, com um alcance que ultrapassa o tempo de duas legislaturas, orientada para o efetivo desenvolvimento educacional e cívico dos alunos, para a qual todos os agentes, incluindo os editores, trabalham e contribuem; países onde não há uma lógica intervencionista, controladora e, paradoxalmente, desresponsabilizadora.
Facto 3: Os preços dos manuais escolares são, há muitos anos, definidos por Convenção estabelecida pelo Ministério da Economia com os editores e ratificada pelo Ministério da Educação. A ex-ministra sabe-o muito bem. Como saberá também – ou, se não souber, qualquer aluno de economia ou gestão poderá facilmente explicar – que, quando o Estado impõe preços máximos para vigorarem em períodos longos, os mercados têm tendência a alinhar por esse nível, sobretudo em contextos difíceis e de elevado risco.
Facto 4: É necessária uma nova política dos preços dos manuais escolares. Há muito tempo que os editores o propõem, desde logo pela consciência que têm quanto ao encargo que representa para a generalidade das famílias a compra dos manuais – só estes são obrigatórios, embora os livros de exercícios sejam fundamentais em várias disciplinas –, mas também porque só assim se poderá combater afirmações simplistas e populistas como as escritas pela ex-ministra Maria de Lurdes Rodrigues. Dizer que a fatura dos livros no 10.º ano pode chegar aos 300 € é fácil; dizê-lo acrescentando que inclui 12 livros, dos quais só 6 são obrigatórios, e que representam entre duas mil a três mil páginas, seria mais sério e rigoroso. Mas, como já se percebeu, não é essa a perspetiva…
Facto 5: Em comparação com outros países, os preços dos manuais escolares portugueses são dos mais baixos da Europa. É curioso que a ex-ministra não tenha feito referência aos preços dos manuais do 1º ciclo, precisamente aqueles em que o governo decidiu pela gratuitidade. Não o faz porque sabe que os preços desses manuais estão demasiado baixos, devido precisamente à imposição de preços máximos. Basta comparar com os preços de manuais similares em Espanha, Itália, Dinamarca, Alemanha ou Finlândia, onde a maioria dos manuais deste nível custam mais do dobro dos portugueses. Se alargarmos essa comparação aos outros níveis de ensino, a conclusão não será muito diferente.
Facto 6: A qualidade da edição escolar portuguesa está ao nível do que melhor se faz internacionalmente. Apesar da obsessão controladora e da tentativa mal disfarçada – felizmente e por enquanto frustrada – de fragilizar e “nacionalizar” o setor, os editores portugueses apresentam um trabalho editorial que é reconhecido internacionalmente, nomeadamente em países considerados de referência. Do mesmo modo, tudo o que tem sido feito ao nível de conteúdos educativos em suporte digital resulta, única e exclusivamente, do investimento feito pelas editoras escolares portuguesas, o que muito tem contribuído para a melhoria das dinâmicas na sala de aula, com resultado evidentes na motivação dos alunos e na eficácia das aprendizagens.
O debate em torno do manual escolar tem de ser feito com seriedade e rigor, sem cedência a demagogias e populismos, e com espírito de compromisso. É essa a minha postura e é isso que esperaria de outros intervenientes, ainda para mais tratando-se de uma ex-ministra da Educação. Contudo, não terá sido por acaso que, no livro “A Escola Pública pode fazer a diferença” que publicou em 2010, depois de sair do governo, Maria de Lurdes Rodrigues não tenha dedicado nenhum dos 25 sub-capítulos que o compõem à questão dos manuais escolares.
Vasco Teixeira
Manuais escolares: o populismo decide, a sensatez paga
Como irá lidar o Governo com a incoerência que resulta de impor a reutilização ao mesmo tempo que anuncia a alteração de programas
PÚBLICO | 19.10.16
O Governo escreveu e os jornais repetiram: a despesa com a Educação sobe 3,1% em 2017. Mas, não é assim. O que o Governo acaba de apresentar é o que estima vir a gastar em 2017, que comparou com o que previu gastar em 2016. Ora o Governo sabe que vai fechar as contas de 2016 com uma despesa bem superior à que estimou. Termos em que, com o que já se conhece, a afirmação é falsa.
Apesar deste expediente e dos artifícios que recheiam o OE 2017, fica desde já claro que prefiro a lógica que o informa à lógica dos que o antecederam. Posto isto, permitam-me que formule a pergunta de partida para abordar um desses artifícios: quais são as consequências da imposição de um modelo de gratuidade e reutilização dos manuais escolares? Como se pretende abordar uma indústria que, estima-se, move anualmente 100 milhões de euros, dá emprego a duas mil pessoas e interessa a 1.600 livrarias? Poderemos ter, numa primeira fase, sob um pretexto político discutível mas que é bem acolhido pelo , mainstream uma iniciativa que poderá destruir, numa segunda fase, uma cultura que demorou décadas a desenvolver-se? Tratar-se-á de uma actuação movida por simples preconceito, que acaba abalroando, de modo centralista, interesses de editores, de autores e dos que trabalham na indústria da produção de livros?
Um parecer de Gomes Canotilho e Jónatas Machado e uma entrevista de Alexandra Leitão deram respostas opostas. Mas enquanto o parecer (ainda que pago pelos editores e apesar de eu nunca ter visto um só que não dê razão a quem o encomendou) é sólido e fundamentado, na entrevista a essência do problema é escamoteada por afirmações gongóricas, de pendor totalitário. No parecer sublinha-se a necessidade de ponderar a gratuidade com o efeito adverso numa indústria livreira livre e democrática. Na entrevista, Alexandra Leitão apoda o parecer de “juridiquês”. No parecer relaciona-se, com exemplos, a posse plena do livro escolar com os resultados superiores obtidos nos programas internacionais de avaliação de resultados. Na entrevista, Alexandra Leitão limita-se a sentenciar de cátedra: “ser contra a reutilização é passar um atestado de diminuição ao povo português”.
Nada do que fica dito branqueia a necessidade de uma melhor regulação da actividade das editoras escolares, que funcionam em oligopólio, que praticam preços injustificáveis face a uma oferta e uma procura antecipadamente conhecidas, onerando desproporcionalmente os orçamentos familiares. Outros sim, põe em relevo o que devia ter sido feito, se o Governo respondesse às perguntas que vai deixar sem resposta. Como vai gerir administrativamente milhões de processos de empréstimo, designadamente executar o recebimento das indemnizações pelos manuais que sejam devolvidos em mau estado, ou não sejam devolvidos? Por que estranho critério excluiu liminarmente do processo os alunos do ensino privado? Por que nada fez para conferir eficácia ao regime de certificação dos manuais escolares, previsto na Lei nº 47/2006? Por que razão não esperou pelas conclusões do grupo de trabalho que nomeou para estudar o problema? Que tem o Governo a dizer sobre a autonomia das escolas e o correlato poder de livre escolha dos manuais, agora fortemente condicionado? Que ponderação foi feita sobre as consequências de uma caixa de Pandora, que se abre num cenário de ensino obrigatório que muitos parecem ter esquecido ser de 12 anos, doze, e não apenas de ensino básico? Como irá lidar o Governo com a incoerência que resulta de impor a reutilização ao mesmo tempo que anuncia a alteração de programas, que vão já no próximo ano tornar obsoletos manuais a meio do ciclo de validade legal?
Eu sei que os populistas costumam decidir antes de reflectir e ouvir. Mas sempre custa ver a sensatez a pagar a factura.
Santana Castilho | Professor do ensino superior
Os manuais escolares são de todos nós
Uma nova política para o livro escolar não dispensa políticas educativas estáveis e programas que perdurem no tempo, para que a cada novo ciclo governativo tudo deixe de mudar, inclusive os manuais escolares.
PÚBLICO | 11.10.16
A entrevista que a secretária de Estado da Educação dá hoje ao PÚBLICO é reveladora da determinação com que o Governo quer enfrentar um dos sectores que há mais tempo goza da complacência do Estado na frente educativa: o da edição em geral e dos livros escolares em particular, onde um punhado reduzido de editores tem beneficiado do status quo há muito vigente à custa dos orçamentos familiares de muitos portugueses.
Ninguém sabe ao certo quanto vale o mercado da edição de livros escolares em Portugal e isso diz muito sobre a opacidade do sector. O que se sabe e o que poucos questionarão é que todos os anos milhares de portugueses são forçados a gastar o que têm e o que não têm em dezenas de manuais novinhos em folha, quando há alternativas menos onerosas para as famílias e para o ambiente. Os exemplos abundam e até nos são próximos: na Europa são vários os países que oferecem manuais aos seus alunos e o próprio Conselho Nacional de Educação já por três vezes indicou que este é o caminho a seguir. A multiplicação de bancos de partilha gratuita de manuais e os esforços de muitas câmaras para oferecê-los mostram que esse caminho não só é viável como há muitos portugueses dispostos a percorrê-lo.
O actual Governo fez, por isso, o que há muito devia ter sido feito: dar início a um programa verdadeiramente inclusivo de oferta gratuita de manuais escolares com vista à sua reutilização, para já exclusivo dos alunos do 1.º ciclo mas que se espera venha a ser alargado progressivamente aos restantes ciclos de ensino. Ao todo são três milhões de euros investidos a oferecer manuais a 80 mil crianças de seis anos de idade, que no fim do ano os devolverão para que outras façam uso deles. Se o programa resulta só mais tarda se saberá, mas é difícil discordar da justeza de uma medida que pensa em primeiro lugar nas famílias e no seu bem-estar.
É preciso agora que o mesmo Governo que parece apostar numa mudança de paradigma dê também o exemplo que tem faltado ao longo dos anos: uma nova política para o livro escolar não dispensa políticas educativas estáveis e programas que perdurem no tempo, para que a cada novo ciclo governativo tudo deixe de mudar, inclusive os manuais escolares.
Num país em que a educação tem sido vezes demais palco de disputas ideológicas, quando muda o Governo mudam os programas e as editoras fazem a festa. O desafio agora é que sejam as famílias a festejar.
Tiago Luz Pedro
Aprender sem barreiras
Jornal de Notícias | 20.09.2016
A propósito do que vou lendo e ouvindo por aí sobre a importância de preservar os manuais escolares, vem-me à memória uma imagem que retive quando visitei o Museu Picasso, em Barcelona: os manuais escolares usados (e guardados) pelo pintor apresentam-se repletos de apontamentos e anotações manuscritas. É um exemplo paradigmático da importância do manual escolar para o percurso educativo dos alunos, para o desenvolvimento das aprendizagens e da própria criatividade, mas também do que deve ser entendido como uma correta utilização deste tipo de recurso didático-pedagógico.
Personalizar o que é nosso é uma necessidade do ser humano. Os livros não são exceção. Sublinhar, anotar e numerar são algumas das muitas formas de personalizar um texto e de nos apropriarmos do seu sentido, tornando-o mais acessível e útil para os nossos projetos e atividades, sejam elas lúdicas ou instrumentais.
Nas nossas estantes, ao abrir um livro, literário ou escolar, muitos são os círculos, os sublinhados, os traços, os pequenos apontamentos, os significados de palavras desconhecidas, as perguntas suscitadas pela leitura e os desenhos ou esquemas que representam sensações, associações de ideias e até o que é explicado em contexto escolar. O uso dos livros sempre fez parte da nossa cultura, ao ponto de os materiais em formato virtual já disponibilizarem essas funções.
Infelizmente, cada vez mais jovens chegam ao Ensino Secundário e até à universidade sem o hábito e a destreza de anotar as suas leituras, de sublinhar os textos e de mobilizar todos os meios que lhes permitam apropriar-se dos materiais escritos com que lidam na escola e mais tarde, profissionalmente ou por simples lazer, fora dela.
Diversos estudos realizados em universidades americanas e europeias demonstram inúmeras vantagens na utilização dos livros escolares e na possibilidade de os usar como ferramenta de estudo e, naturalmente, tomar notas, sublinhar, numerar ou destacar graficamente. Estas técnicas ajudam a melhorar a compreensão de um texto devido ao esforço cognitivo e de atenção que implicam, ajudam a estruturar o pensamento, para além de poderem ser úteis para, no futuro, relembrar mais eficaz e rapidamente os assuntos abordados nas aulas.
A gratuitidade através do empréstimo e subsequente necessidade de devolver os manuais escolares como novos, não permitindo uma utilização plena dos seus recursos, levanta barreiras na aprendizagem e gera constrangimentos no estudo dos alunos. O livro escolar é o meio de aprendizagem por excelência, que permite a qualquer aluno uma abordagem coerente, flexível e eficaz aos programas educativos, que promove uma ligação forte e biunívoca com os professores.
Querer impedir que, durante o estudo, os alunos sublinhem ou tomem notas nos manuais é pedagogicamente contraproducente. Os conhecimentos disponibilizados pela psicologia, pelos inúmeros estudos multidisciplinares internacionais existentes sobre este assunto e todo o saber empírico acumulado por gerações de leitores não devem ser ignorados. A liberdade de escrever nos livros é essencial no processo de aprendizagem, independentemente do ano de escolaridade ou da disciplina em questão.
A reutilização é um propósito bem-intencionado que, no entanto, não deve sobrepor-se ao que é fundamental na Educação: o sucesso educativo e o desenvolvimento, cultural, pessoal e social dos nossos alunos. Querer limitar a utilização plena e livre das ferramentas de aprendizagem é pôr em causa esse desígnio.
Adalberto Dias de Carvalho | Docente Universitário
Os manuais escolares e o “social” da esquerda
A gratuitidade dos livros para os alunos do 1.º ano não só não acaba com “as rendas” das editoras, como não contribui para a equidade e justiça sociais
Jornal i | 31.08.2016
Num contexto político de venda a granel de ilusões, sejam elas fiscais ou outras, em que a política praticamente se reduziu à sua dimensão comunicacional, criticar medidas percecionadas publicamente como positivas tornou-se quase crime de lesa-pátria. Seja.
Muito em contracorrente, reconheço, a popular medida da “gratuitidade” dos manuais escolares para todos os alunos do 1º ano do 1º Ciclo sempre me levantou sérias reservas, atendendo ao nosso cenário de recursos públicos escassos. A medida alargou o regime de comparticipação que vigora para as famílias do escalão A a todas as famílias com filhos neste ano escolar. Não só a opção tomada não “termina com as rendas” das editoras, não melhora a qualidade do ensino, mas, mais grave, não contribui para a promoção da justiça e equidade social. Antes, num puro exercício de obtenção de dividendos político-partidários de curto prazo, a opção tomada pelo atual governo agravou a desigualdade social.
O ministro da Educação, ao decidir congelar para o ano letivo 2016/2017 os apoios para a Ação Social Escolar, acabou por confirmar os meus maiores receios. Não haverá qualquer alteração ao Despacho 8452-A/2015 relativo à Ação Social Escolar (ASE) e que estabelece o valor nominal dos apoios sociais, nos quais se incluem também os manuais escolares e materiais escolares. Depois dos aumentos introduzidos em 2013 e em 2015, o atual ministro fez uma escolha política: optou por comparticipar a 100% a compra de manuais escolares dos alunos do 1.º ano do 1.º ciclo a quem não precisa, mas congelar as comparticipações e os apoios da Ação Social Escolar nos restantes anos e ciclos para o ano letivo de 2016 para quem deles necessita. Uma escolha socialmente injusta.
O cálculo do ministro da Educação foi simples: executar uns tostões (pois pelos dados da Associação Portuguesa e Editores e Livreiros os novos beneficiários da medida na verdade a dispensam) numa medida altamente popular, de retorno mediático garantido, em detrimento de cumprir com o que se comprometeu em sede de Orçamento do Estado: reforçar em 9,4% a comparticipação para manuais, para os alunos com Ação Social Escolar.
Não reforçou, congelou.
Mais, ao não alterar o despacho da ASE e o valor nominal do apoio, testemunharemos um extraordinário paradoxo: se o ministério cumpre com o previsto no OE-2016, isso significa que em Portugal há hoje mais famílias carenciadas, o que contraria todo o discurso das esquerdas; se não executa o orçamentado, significa que optou deliberadamente por poupar onde não devia, não melhorando efetivamente as condições de vida das famílias carenciadas. Em nenhuma das alternativas o ministro e o Governo saem bem na fotografia. E, assim sendo, é exigível que de futuro os partidos que suportam o governo tenham no mínimo algum decoro sempre que falarem sobre esta matéria. Não deixa de ser, no entanto, o “social” da esquerda no seu melhor.
Eugénia Gamboa | Professora universitária
Não à devolução de livros!
Jornal de Notícias | 29.07.2016
No próximo ano letivo, o Ministério da Educação vai distribuir gratuitamente os manuais escolares a todos os estudantes do 1.º ano do 1.º Ciclo do ensino Básico. Excelente notícia. Todavia, também vai obrigar a devolvê-los. E em bom estado. Eis uma exigência completamente desastrosa.
A ideia de centrar o esforço da ação pública na concretização dos princípios da equidade e da igualdade de oportunidades para todas as crianças e jovens está inscrita no Programa do XXI Governo Constitucional, sendo o acesso aos recursos didático-pedagógicos uma variável estruturante de uma educação igual para todos. Assim se percebe a decisão do Ministério da Educação de distribuir os manuais de forma gratuita a quem no próximo ano inicia a sua caminhada escolar. Espera-se que a medida se estenda gradualmente a todo o 1.º Ciclo. A Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares explica o procedimento numa nota informativa publicada no respetivo site. Lê-se o documento e é difícil construir um argumentário crítico ao que se fixa. No entanto, um anexo ao texto faz desmoronar uma política que, à partida, se consideraria bem pensada. Obriga-se aí o encarregado de educação a assinar uma declaração em que se compromete a entregar, numa data determinada, os manuais escolares em bom estado, tendo “consciência de que a penalidade em caso de não entrega anteriormente prevista consiste na devolução à escola do valor integral do manual”.
Ora, terminado o ano letivo, será possível haver um manual que não apresente textos sublinhados, desenhos pintados em cores garridas ou o ensaio aqui e ali das primeiras letras ou números? A resposta é óbvia. E ainda bem que assim acontece. Um livro escolar imaculado será um sinal inequívoco de que não foi usado e, pior ainda, de que não foi capaz de criar qualquer elo de ligação com a criança que dele se apoderou durante um ano letivo. Querer fazer retornar à escola manuais em bom estado é dizer aos alunos: não leiam, não escrevam, não se relacionem com os livros. Por outro lado, no ano letivo seguinte, por que razão uma criança haveria de ter livros novos e uma outra livros em reutilização? Certamente que cada um de nós se lembrará bem da alegria sentida no início de cada ano letivo ao ser-lhe entregue material novo… Vamos fazer desaparecer esse entusiasmo?
Pensemos ainda esta questão pela presença física de livros nas nossas casas. Hoje, o índice de leitura dos jovens portugueses é reduzidíssimo. Os mais novos não leem livros. Porque a escola não cria esses hábitos. E a família também não. Em meios carenciados, os manuais escolares serão talvez os únicos livros que existem numa casa. Se, a partir de agora, a escola quer fazê-los voltar para si, os livros podem desaparecer completamente dos lares e isso não significará, na maioria dos casos, que as pessoas passaram a ler as obras através de ecrãs periféricos… Observe-se, por exemplo, as tendências de design no mobiliário e procurem-se aí as tradicionais estantes… Praticamente desapareceram, porque deixamos de comprar e ler
livros. Uns porque perderam completamente esse hábito, outros porque o transferiram para plataformas digitais.
Ontem, na Imprensa diária, o Ministério da Educação admitia que a reutilização dos livros será escassa, prometendo que não haveria penalizações significativas para quem não os devolvesse. É um certo retrocesso relativamente ao compromisso de honra que se quer ver assinado pelos encarregados de educação. Mas não chega. É preciso que as regras não fiquem pelas meias-palavras.
Entregar gratuitamente os manuais escolares é uma medida positiva que não pode ter uma nota de rodapé que a desvirtue radicalmente. Não faz qualquer sentido investir em políticas de promoção da leitura quando se destrói tudo no lugar onde se dão os primeiros passos nesse sentido. Faltam ainda algumas semanas para o arranque do ano letivo. Tempo suficiente para retirar das escolas um anexo sem sentido. Porque aquilo que se deve fomentar nos mais novos é um uso intenso dos seus livros.
Felisbela Lopes | Professora Associada com Agregação da Universidade do Minho
O aluno e o (seu) manual
A intenção do Governo de exigir a devolução dos manuais escolares no final do ano letivo é discriminatória e prejudicial ao processo de aprendizagem
Jornal i | 19.07.2016
A vitória de Portugal no Europeu de França e os festejos da Nação nos dias seguintes, com uma receção apoteótica aos heróis de Paris, relegaram para segundo plano tudo o resto. É natural.
Mas se ainda não passou e durante anos ainda muito se há de recordar tamanho feito, a verdade é que outras notícias houve que o golo de Éder e o levantar da taça pelo lesionado Cristiano Ronaldo quase apagaram da agenda.
Mais ainda com o horrendo ataque em Nice e o golpe e o contragolpe de Estado na Turquia e, de permeio, a discussão sobre as sanções a Portugal por incumprimento do défice.
Com tudo isto, e porque o próximo ano letivo ainda vem longe, parece ter caído no esquecimento uma importante notícia da penúltima edição do Sol: os manuais oferecidos pelo Estado no início do ano letivo vão ter de ser devolvidos (ou pagos pelos pais dos alunos) no final do ano escolar.
Serve o presente para alertar para a importância da questão e para a necessidade de debate público de um tema fundamental para o processo pedagógico e para a formação das crianças deste país. Antes que o ano comece e já não haja remédio.
Pode pretender reduzir-se a questão ao foro político ou económico, a querelas ideológicas ou partidárias, a diferentes perspetivas em sede de responsabilidade social ou de interesses dos editores livreiros ou do pequeno comércio das livrarias locais, com os dias contados se o Governo for mesmo avante… Que só por si já são demasiado relevantes para se enterrar a cabeça na areia.
Mas há muito mais a discutir por detrás de medidas como as da pretensa gratuitidade e especialmente a da obrigatoriedade de devolução dos manuais.
No meu exame de segunda classe, estando eu concentrado na redação e em fazer a melhor caligrafia possível (porque os meus gatafunhos ninguém os entendia e às vezes até eu tinha dificuldade em decifrá-los), tendo riscado uma palavra que pretendia substituir, fui surpreendido por um tabefe aviado pela professora primária que passeava em revista com os pés bem mais leves do que a mão. Logo seguido da reprimenda justificativa, porque a folha de teste não era para se riscar e se algo tinha escrito que pretendesse eliminar, não podendo apagar, devia somente abrir parêntesis, colocar um leve traço sobre a palavra e fechar parêntesis.
Não escrevi mais nada. Respeitosamente pedi licença, levantei-me e depositei o teste incompleto na secretária da professora, regressando para o meu lugar (entre parêntesis, com a face ruborizada, a dobrar num dos lados). Tive Bom+ e o comentário de que provavelmente teria tido Muito Bom se tivesse concluído a composição. Fiquei chateado. Primeiro porque nunca apanhara de um professor; segundo, porque a dor que sentia não era do estalo, mas de revolta pela injustiça.
Recordei-me desta história mais de 40 anos volvidos, porque o Governo pretende impor aos alunos que vão iniciar a escolaridade obrigatória no próximo mês de setembro a obrigatoriedade de não riscarem os manuais escolares. Porque não são deles. São só emprestados.
O sentimento de posse e propriedade de um livro, seja um manual ou não, é absolutamente essencial para a relação que a pessoa (neste caso, o aluno) cria com a leitura (e o estudo).
Se o livro não é dele, se não o pode riscar, nem estragar com uma folha dobrada, com um sublinhado para destacar o que mais releva, com uma anotação à margem ou em rodapé de uma explicação dada pelo professor na aula… como o pode utilizar e dele verdadeiramente usufruir?
Não pode. Porque, no final das contas, o livro ou manual escolar que o Estado se propõe oferecer tem de ser devolvido intacto e pronto a usar por outrem.
Uma medida anunciada em embrulho de preocupação ou benemerência social, que, porém, se revela com consequências inevitavelmente discriminatórias e, sobretudo, fatais para o incentivo da leitura e o processo de aprendizagem e consolidação de conhecimento.
O futuro são os e-books e as novas tecnologias. Se podemos ter tudo num micro chip de um telemóvel ou de um computador – Magalhães ou de uma marca qualquer – para quê estudar? É como a tabuada, para quê sabê–la se hoje há máquinas de calcular sempre à mão?
Pois, podendo tudo isso ser verdade, que não é, estou é mesmo a ver os miúdos a não pegarem nos livros mas é por terem medo de os estragar.
Sobretudo se os pais não tiverem forma ou meios de os pagar.
E se chegarem ao fim tão direitinhos como no dia em que foram dados, é quase garantido que o desgraçado do aluno muito pouco ou nenhum proveito dele tirou.
Há, obviamente, muito mais argumentos, que não cabem neste modesto artigo, para pôr em causa esta política que parece tão solidária e social e que de tal tem muito pouco ou nada.
Basta questionar como podem os alunos devolver os livros no final do ano letivo, se o seguinte quase sempre começa com a matéria do ano anterior, ainda por acabar.
As férias grandes – demasiado grandes – são a melhor oportunidade para os alunos consolidarem conhecimento. Nem que seja só com uma simples leitura do manual. Ora, convenhamos, quem já não os tem, não pode.
Mas o pior mesmo é imaginar uma criança a pegar no livro e completar a sentença no próprio manual e arriscar-se a levar uma solha do pai ou da mãe que, perante tamanho sacrilégio, faz contas ao que vai ter de desembolsar.
Para esses pais e encarregados de educação com dificuldades económicas, o melhor é o filho tocar o menos possível nos livros, jamais os desfolhar vezes sem fim e em caso algum ter uma caneta à mão ou sequer próxima. Como o conselho da outra: «Ó filho, larga os livros e vai mas é jogar à bola… olha para o Cristiano Ronaldo e para o Éder, a alegria do nosso Portugal».
Mário Ramires